sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Cadê o Museu da Escravidão?

O Brasil, país que mais tem afro-descentes no mundo,fez um museu para contar a saga dos imigrantes mas não fez um museu para mostrar o holocausto dos escravos. Por quê?

IVAN MARTINS
20/11/2015 - 20h13 - Atualizado 20/11/2015 20h13


Um dos lugares mais impressionantes que eu conheço é o Museu do Holocausto, em Washington. Ele foi concebido para que o visitante repita de forma simbólica a experiência dos campos de extermínio nazistas. Quem entra no museu ganha o número e o nome de uma vítima real, e caminha por ambientes idênticos aos que conduziam às câmaras de gás. Num dado momento, é preciso atravessar uma sala forrada com os sapatos de homens, mulheres e crianças mortos nos campos. A sensação é devastadora.
Hoje, Dia da Consciência Negra, é uma boa ocasião para perguntar por que não temos no Brasil um Museu da Escravidão, capaz de provocar nos visitantes as mesmas reflexões humanistas e antirracistas que o museu dedicado ao Holocausto provoca. 
A escravidão é o fato histórico mais relevante da história do Brasil. Seus efeitos sociais, culturais e econômicos estão em toda parte. A violência da escravidão durou mais de 300 anos, consumiu a vida de 3 milhões de africanos e de incontáveis descendentes e deu ao país a fisionomia mestiça, injusta e desigual que ele tem até hoje. Por que, então, não há um museu específico para lembrar essa atrocidade monumental, da qual descendem (pelo menos...) os 53% de brasileiros que se definem como negros e pardos?
Antes que alguém avise, eu sei que existe o Museu Afro-Brasil, em São Paulo, criado em 2004. Mas a sua finalidade é outra. Trata-se de um museu da cultura afro-brasileira, que tem a escravidão como um dos núcleos de exibição. É um museu fundamental, mas não suficiente. Mal comparando, é como se houvesse em Washington um Museu da Cultura Hebraica, e que, nele, as evidências do Holocausto ocupassem algumas salas. A intenção e os resultados não seriam os mesmos.
Intenção, neste contexto, é uma palavra importante. Toda vez que se discute a herança da escravidão no Brasil aparece alguém para dizer que a situação não é tão grave assim. É como se o país ainda resistisse em admitir o tamanho do crime cometido contra os africanos e relutasse em oferecer desculpas simbólicas e práticas aos seus descendentes. Quando o Supremo Tribunal Federal votou favoravelmente às cotas raciais nas universidades, em 2012, não faltou gente instruída prevendo o apocalipse pedagógico e a explosão dos conflitos raciais no país. Nada disso aconteceu, obviamente, mas ninguém veio a público pedir desculpas. Por quê? 
No século XIX, a elite brasileira acreditava que o “problema negro” do país seria resolvido com a importação de imigrantes europeus e o consequente “branqueamento” da população. Era uma espécie de pensamento mágico que hoje nos parece tão racista quanto ridículo. No século XXI, a mentalidade é de negação. Os miseráveis que pedem nas esquinas são negros e não há negros nos restaurantes caros, nos teatros e nas salas de reunião das grandes empresas. Ainda assim, as pessoas repetem, mecanicamente, que não há um problema social ligado à cor da pele no Brasil - e que a população negra não precisa de programas específicos de apoio e compensação. Isso me sugere que o país não fez uma autocrítica profunda da escravidão e que tampouco se percebe como descendente dos escravos. Como no século XIX, ainda nos enxergamos como um país branco que tem uma população pobre de negro, "um problema".
Por isso talvez não tenhamos no Brasil um Museu da Escravidão, embora tenhamos o Museu da Imigração. Num grupo o país se reconhece, o outro ele nega como um corpo estranho. Isso faz com que nossas crianças e jovens sejam privados de um museu onde poderiam- por exemplo - ganhar o nome de um adolescente africano, embarcar no porão de um navio negreiro, ser vendido como animal no Valengo e entender a humilhação da senzala, onde pessoas cresciam e morriam em meio ao medo e à fome.
A escravidão foi o nosso Holocausto e nossas crianças e jovens, de todas as cores, deveriam ser ensinadas a refletir sobre isso. Se não por descenderem de escravos, por viverem cercadas das consequências profundas da escravidão todos os dias, em toda parte do país, ao longo de toda a vida.










João Ferreira e sua babá, Mônica ( Wikimedia Commons, Museu Afro-Brasil)

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