segunda-feira, 7 de setembro de 2015

O convento abre caminhos

Fundado a partir de profecias, o Mosteiro da Luz inaugurou nova fase urbanística no Centro de São Paulo

Amilcar Torrão Filho
Nos sonhos de Helena Maria do Espírito Santo, Jesus aparecia rodeado de ovelhas, “umas nos braços, outras pelos ombros e outras tentando subir pelo seu corpo”, e lhe dizia: “Eis aqui estas minhas ovelhas, que procuram um aprisco para se recolherem e não o encontram, pois vós, podendo, não quereis subministrar-lhes um, fundando um Convento, em cumprimento de minha vontade”. Helena era uma mulher pobre, vivia em um recolhimento para mulheres, e foi obstinada no cumprimento de suas visões proféticas: em atendimento aos pedidos do Cristo, conseguiu fundar um novo mosteiro. Hoje ele é um dos pontos turísticos mais visitados de São Paulo, e um dos poucos conjuntos arquitetônicos coloniais remanescentes na cidade. 
 
O Mosteiro da Luz foi obra de Frei Antônio de Santana Galvão, canonizado em 2007 como o primeiro santo brasileiro. Em 1770, Frei Galvão tornou-se o confessor do Recolhimento de Santa Teresa, uma espécie de convento para onde as mulheres iam a fim de preservar sua honra e gozar de bom nome por meio da castidade. Foi ali que conheceu Helena Maria do Espírito Santo. Ela ingressara no recolhimento como serva e logo se tornara noviça graças à doação de um dote pelo padre que tinha sido seu primeiro confessor. Ao Frei Galvão, revelou ter entrado ali por ser frequentemente importunada pelo demônio, e contou seus sonhos e visões, em que Jesus ordenava a construção de um novo recolhimento.
 
Para edificar o convento da irmã Helena, Frei Galvão contou com a ajuda do governador da capitania de São Paulo, D. Luís Antônio de Souza Botelho Mourão, o morgado de Mateus. Era um período de mudanças importantes na ocupação da cidade, que se expandia e alcançava a zona da Luz, até então pouco habitada. Além do novo convento, a região ganharia seu primeiro parque público, o Jardim da Luz, e um campo de treinamento militar. A Câmara de Vereadores também se posicionou a favor do projeto, ressaltando que, para além da utilidade à devoção das recolhidas, o Mosteiro da Luz constituiria um passeio para a população, servindo “de ornato de recreação e ocasião de devoção às pessoas que ali concorrem todos os dias especialmente aos sábados”. 
 
Desde o princípio, Frei Galvão acreditava que a Luz se tornaria parte importante da cidade, tanto quanto o centro (de que hoje faz parte). Determinou que se alterasse a disposição original do templo, que era voltado para a cidade, direcionando o frontispício para o Campo da Luz. Posteriormente, edificou outro frontispício, virado para o caminho do Guaré, atual avenida Tiradentes. É por isso que quem entra hoje na igreja do mosteiro tem o altar-mor à esquerda, ladeado por dois altares menores. Ele parecia perceber e talvez antecipar a transformação da área adjacente em um lugar de recreio que viria a ser importante para São Paulo em seu crescimento em direção ao norte.
O caráter místico da fundação do Mosteiro da Luz manifestou-se além dos sonhos de irmã Helena. Em 1774, ela e as outras recolhidas saíram do abrigo de Santa Teresa em direção ao novo: partiram embarcadas em cadeiras (sinal de respeito pela sua condição de religiosas), acompanhadas de diversas autoridades e de Frei Galvão, em meio a uma enorme tempestade. Todas se molharam, exceto a fundadora do convento. Helena sobreviveu apenas um ano à inauguração, morrendo no dia 23 de fevereiro de 1775. Segundo Frei Galvão, ela partiu em estado de santidade: seu corpo manteve-se flexível, com odor de rosas, e o sangue – do qual se tomaram amostras para servirem de relíquias – ainda fluía horas depois de sua morte.  
 
A obra arquitetônica é uma das poucas igrejas de planta octogonal (com oito ângulos) construídas em taipa de pilão no Brasil, dada a complexidade do trabalho.   Entre os outros exemplos conhecidos, há em Minas Gerais a Igreja do Rosário, em Ouro Preto, e a de São Pedro dos Clérigos, em Mariana, além do Outeiro da Glória, no Rio de Janeiro. É também um dos últimos remanescentes da taipa e o exemplo mais conservado de arquitetura colonial que ainda existe em São Paulo. No frontispício voltado para a atual avenida Tiradentes há três arcos realizados em granito, o que era raro na cidade. O pórtico do mosteiro reproduz o da Igreja de São Francisco, que também possui planta octogonal. Isto não surpreende, pois Frei Galvão foi comissário da Ordem Terceira de São Francisco entre 1776 e 1780, pouco antes das obras de ampliação da Igreja. A preservação do Convento da Luz é notável e suas instalações são arejadas, com corredores amplos e saídas para pátios ajardinados, revelando o mérito do projeto de Frei Galvão. Suas pinturas de forro, pouco conhecidas por estarem em área de clausura, representam episódios da vida franciscana e da coroação da Virgem pela Santíssima Trindade. Desde que foi erguido, há 240 anos, manteve sua estrutura original quase inalterada, mesmo após a ampliação feita no século XX com doações do conde Prates. Até a horta conventual, única na capital, foi conservada.
 
Desde 1970, o mosteiro divide espaço com o Museu de Arte Sacra de São Paulo, cujo acervo compreende obras do século XVI ao XX. A implantação do museu em suas dependências confirma a vocação do bairro para a diversidade sociocultural, concentrando atualmente diversas outras instituições que guardam um pouco do patrimônio artístico, cultural e mesmo linguístico da cidade. A região da Luz e Bom Retiro é uma das principais sínteses de São Paulo, com o que a cidade tem de melhor e de pior. Nos arredores do convento estão importantes espaços culturais, como a Pinacoteca do Estado – que traz como anexo o Memorial da Liberdade, sediado no antigo DOPS – o Museu da Língua Portuguesa, um dos mais visitados da cidade, que ocupa parte do edifício histórico da Estação da Luz, e a Sala São Paulo, sede da Orquestra Sinfônica, instalada num prédio da antiga estação de trem Sorocabana (ou Júlio Prestes). Ali também estão a Oficina Cultural Oswald de Andrade, o Teatro TAIB – criado pela comunidade judaica do bairro – o Arquivo Histórico Municipal e o Parque da Luz, antigo Jardim Botânico e primeiro jardim público da cidade, fundado em 1799. 
 
Antes uma área afastada da cidade, escolhida por sua tranquilidade para a construção do convento e do jardim botânico, a região da Luz torna-se, nos séculos XIX e XX, uma importante zona de entroncamento de caminhos. Com a integração favorecida pela ferrovia foi possível urbanizar áreas novas, como os bairros dos Campos Elíseos e Santa Ifigênia. O resultado é o dinamismo que se vê hoje, um caldeirão social no qual diversas etnias convivem.
 
Um comércio tradicional e variado se espalha pela região. A rua José Paulino reúne lojas de roupas, as ruas das Noivas e São Caetano têm lojas de vestidos de noivas. Nas redondezas, os antigos trabalhadores italianos e judeus foram aos poucos sendo substituídos por nordestinos, bolivianos e coreanos, com suas lojas e restaurantes típicos, mantendo a tradição da cidade de acolher migrantes e imigrantes de todas as partes. Entre 1977 e 1990, os desfiles de carnaval eram realizados em sua artéria mais importante, a avenida Tiradentes. Tudo isso convive com as proximidades da chamada cracolândia e com denúncias de trabalho escravo de imigrantes ilegais bolivianos em confecções da região.
 
Esse espaço da cidade foi alvo, em 2005, do projeto de revitalização batizado de Nova Luz. Como não podia deixar de ser, tornou-se assunto dos mais polêmicos. O projeto previa a criação de um polo comercial e de serviços, com a instalação de empresas sobretudo da área tecnológica, oferecendo-lhes incentivos fiscais. Muitos arquitetos e urbanistas criticaram a iniciativa pela intenção de expulsar os moradores e os negócios locais, além de não prever nenhuma ação junto aos dependentes de drogas. O projeto Nova Luz acabou suspenso em 2013. 
 
Com os desafios que os projetos de revitalização colocam para a região, a Luz mantém-se como espaço de experimentação e criatividade de soluções urbanísticas. O que se espera dos atuais governantes é que olhem para trás e se inspirem em Frei Galvão, no governador Morgado de Mateus e na irmã Helena para que o sentido de ocupação inventiva e inteligente permaneça o mesmo que norteou a construção do Mosteiro da Luz. 
 
Amilcar Torrão Filho é professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e autor de A Arquitetura da Alteridade: a cidade luso-brasileira na literatura de viagem (1783-1845), (Hucitec/Fapesp, 2010).
 
Saiba Mais
 
ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colônia. Condição feminina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750-1822. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Edunb, 1993.
TIRAPELI, Percival (org.). Arte sacra colonial: barroco memória viva. 2. ed. São Paulo: Unesp/ Imprensa Oficial, 2005.
TOLEDO, Benedito Lima de. Frei Galvão: arquiteto. Cotia, SP: Ateliê, 2007. 
















Fotografia do Convento da Luz, de Militão Augusto de Azevedo, com data aproximada de 1862/63. (Imagem: Reprodução)


























Retrato do Morgado de Mateus, D. Luís Antônio de Sousa Botelho, governador da capitania de São Paulo, que ajudou a construir o Recolhimento da Luz ao lado de Frei Galvão, no século XVIII. (Imagem: FUNDAÇÃO DA CASA DE MATEUS, VILA REAL – PORTUGAL)

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