sábado, 17 de janeiro de 2015

A outra Estrada Real

Após a decadência do ouro, D. João mandou abrir caminho ligando Vitória a Ouro Preto, redescoberto há poucos anos

João Eurípedes Franklin Leal
1/12/2014
  • Quando da criação das capitanias hereditárias no Brasil, foi doada a Vasco Coutinho uma área que, em 1535, se tornou a capitania do Espírito Santo. Seu território abrangia o atual Espírito Santo, parte de Minas Gerais e parte de Goiás. Foi dentro desse território que Antônio Rodrigues Arzão, em 1692, no rio Casca, descobriu oficialmente o ouro tão procurado, que mudaria radicalmente a economia e a política coloniais.  
     
    Portugal procurou adaptar-se à nova realidade, controlando a extração de ouro, tentando conter o contrabando, limitando a entrada e a saída de pessoas da região. De tão importantes as Minas Gerais ganharam capitania própria, relegando a do Espírito Santo a uma estreita faixa de terra à beira mar. E para maior controle, limitou-se a uma única via o acesso às minas de ouro: a Estrada Real (Caminho Velho), que partia de Paraty, no Rio de Janeiro, em direção a Ouro Preto – depois substituída pelo Caminho Novo, que ligava diretamente o Rio de Janeiro a Minas Gerais. Foi proibido o uso de qualquer outra estrada ou via de acesso. Isolado, o Espírito Santo, com suas florestas e indígenas pouco amistosos, tornou-se a “defesa natural das Minas Gerais”. 
     
    Quando a produção aurífera entrou em franca decadência no final do século XVIII, o governo português teve que buscar alternativas de riqueza para a região, e uma delas foi reabri-la ao território do Espírito Santo e ao porto de Vitória. Em abril de 1814, veio a ordem do príncipe regente D. João: que se construísse uma Estrada Real ligando Vitória a Ouro Preto. Em maio de 1815, novas instruções do governo real permitiram o início efetivo dos trabalhos: estabelecia-se o fornecimento de soldados e índios para a obra e ordenava-se a construção de quartéis de proteção na estrada, de três em três léguas. 
     
    Era chamada de “Estrada Real” toda aquela construída por ordem do Rei e por conta de seu tesouro. A São Pedro de Alcântara foi uma das últimas Estradas Reais construídas. Sua largura era de 15 palmos (cerca de três metros), suficiente para passarem duas mulas carregadas, lado a lado. Normalmente ao se construírem estradas, costumava-se usar antigos caminhos já abertos pelos indígenas, os chamados peabirus. Esta chama a atenção por passar sempre em lugares altos, evitando atravessar rios e terrenos baixos com charcos e pântanos. A rota perfaz, com seus ramais, um total de 575 quilômetros, desbravando o leste mineiro e adentrando pelo sul do Espírito Santo, para enfim ligar Ouro Preto e Vitória.  
     
    A construção da Estrada Real São Pedro de Alcântara, também chamada Estrada do Rubim, foi concluída em agosto de 1816. Disposto a investir na região, já em dezembro, D. João VI – título que assumiu naquele ano, quando foi coroado – assinou uma Carta Régia na qual ordenou o uso de tropas para proteger a Estrada Real, a promoção das comunicações entre Espírito Santo e Minas Gerais, a abertura de estradas complementares, que se examinasse o possível uso de rios para navegação e que por dez anos fossem isentas de impostos as mercadorias ali cultivadas ou que ali transitassem. Determinou também a lavra de ouro na Serra do Castelo. O objetivo era tentar amenizar a situação de total decadência e paralisação da vida econômica e social na área da mineração em torno de Ouro Preto – então empobrecida capital da província de Minas. Necessitava-se de novas riquezas, novos campos, da formação de novas fazendas. E havia também o interesse do governo provincial de que Minas não ficasse refém do porto do Rio do Janeiro, ganhando o de Vitória como alternativa. 
     
    Assim que a estrada passou a ser usada, houve constantes reclamações quanto ao porto de chegada no rio de Santa Maria, situado no fundo da baía de Vitória, devido à necessidade de se percorrer todo um trecho sobre canoas, descendo o rio. Em consequência, em 1817 viabilizou-se um ramal que passava pela povoação de Viana e se dirigia ao Porto Velho de Itacibá, em Cariacica, onde havia a travessia para Vitória. Apesar de mais usada, a nova opção não anulou o antigo ramal. 
     
    Os quartéis espalhados pelo percurso foram algumas vezes mudados de local, e alguns desativados. Eram construções pequenas, de pedra e madeira, cobertas de folhas de palma ou de sapê, para abrigar conservadores e vigilantes que tinham a missão de proteger os transeuntes dos indígenas e dos bandoleiros. Lá, havia espaço para abrigo dos viajantes, pasto para os animais e hortas. Todos foram batizados com nomes de cidades portuguesas: Cachoeiro do Rio Santa Maria, Bragança, Pinhel, Serpa, Ourém, Barcelos, Vila Viçosa, Monforte, Souzel, Chaves, Santa Cruz, Borba e Melgaço. A exceção era o Vila do Príncipe, que fazia referência a D. João.
     
    A estrada teve uso imediato, mas é escassa a documentação dos primeiros transeuntes e mercadorias. Sabe-se, porém, que em 1820 ela recebeu uma formidável expedição. Cerca de 72 homens de famílias tradicionais mineiras, já quase empobrecidos àquela altura, reuniram-se para vasculhar toda a estrada e terras vicinais em busca de apossamentos. A expedição resultaria no surgimento de várias importantes cidades na região, como Cachoeiro de Itapemirim, Alegre, Castelo, Guaçuí, Venda Nova, Iúna e Conceição do Castelo. Os desbravadores chegaram a extrair algum ouro, mas nos 30 anos seguintes o progresso foi limitado.
     
    Após a independência do Brasil, em 1822, o Espírito Santo viveu um período de decadência econômica que resultou no abandono da agora chamada Estrada Imperial São Pedro de Alcântara, e no fechamento de alguns quartéis que a protegiam. Graças a uma reforma em 1833, a estrada ganhou novo alento, mas ainda faltavam motivações econômicas. Seu uso era intenso no lado mineiro, entre o Caparaó e Ouro Preto via Ponte Nova, mas no Espírito Santo somente o trecho entre Vitória e os nascentes núcleos coloniais tinha uso expressivo. Com o início da imigração alemã, em 1847, a estrada passou a ser usada como forma de penetração territorial e de comércio, dando origem a vilas e cidades ainda hoje quase idênticas às de colonização alemã em Santa Catarina. Os italianos chegariam logo depois, e teriam influência ainda mais marcante: no corredor da estrada mantêm-se lugares que preservam sua língua e tradições originais. 
     
    Em 1860, o imperador D. Pedro II concedeu à região a honra de uma visita. Esteve nas colônias de Viana e Santa Isabel, elogiando em seu diário a qualidade da Estrada Imperial. O movimento então era bem mais intenso: famílias migrantes de Minas Gerais chegavam ao Espírito Santo para se apossar de terras, originando tradicionais fazendas e núcleos urbanos. A mesma estrada era usada pelos filhos de famílias ilustres para chegar às escolas mineiras, principalmente a do Caraça. 
     
    Foi a expansão ferroviária de princípios do século XX que trouxe o início do fim da antiga estrada de terra, suplantada especialmente pela Estrada de Ferro Leopoldina. Hoje, os traços da Estrada Real são acompanhados, de forma quase paralela, pela BR-262, desde Vitória até Rio Casca (MG), e de lá até Ouro Preto, margeados por rodovia estadual.
     
    Descoberta há poucos anos, a Estrada Real atualmente atrai investimentos públicos e privados no sentido de se tornar uma rota turística – projeto que se beneficia, além do evidente interesse histórico, da beleza natural da região do Caparaó. 
     
    João Euripedes Franklin Leal é professor da Unirio e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). 
     
    Saiba mais:
     
    OLIVEIRA, José Teixeira. História do Espírito Santo. Vitória: APES, 2008.
    NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1968.



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