domingo, 28 de dezembro de 2014

Benjamin Moser - Cemitério da Esperança

Reportagem publicada no site do Jornal Zero Hora no dia 29/11/2104 - Uma entrevista com o escritor Benjamin Moser, que escreveu o livro Cemitério da Esperanaç, onde faz críticas à arquitetura de Brasília:
Benjamin Moser tornou-se best-seller nos Estados Unidos escrevendo sobre o Brasil – e, na sequência, fez sucesso também por aqui. Autor da biografiaClarice, sobre Clarice Lispector, publicada nos Estados Unidos com o título deWhy this World?, Moser está lançando agora um breve ensaio sobre o quanto o projeto monumental da construção de Brasília tem a dizer a respeito do pensamento nacional. Cemitério da Esperançae-book editado pela Cesárea, é um texto no qual Moser analisa as grandes reformas urbanas brasileiras e encontra nelas um ponto em comum: a ideia de apagar os problemas do Brasil passando uma borracha no espaço público e recomeçando do zero seguindo modelos importados. Nenhum lugar, para Moser, representa tanto essa ideologia quanto Brasília, capital construída no meio do cerrado, joia da arquitetura modernista e que deveria representar o ingresso da nação em um futuro grandioso que o Brasil mereceria por seu infinito potencial. O resultado é uma arquitetura melancólica, feia e desumana, na visão do jornalista. Publicado em e-book e comercializado diretamente no site da editora (cesarea.com.br) por R$ 3, o livro de Moser é também uma ação militante. A renda do livro será revertida para o movimento Ocupe Estelita, que surgiu em oposição a um projeto imobiliário de luxo em Recife. Chamado de “Novo Recife”, o empreendimento pretende levantar 12 torres na região do cais, próximo ao centro histórico da capital pernambucana – o Ocupe Estelita luta por um projeto alternativo para a área que não descaracterize nem elitize o espaço.
Como surgiu seu interesse pela arquitetura brasileira e pela interpretação possível que ela oferece do Brasil?
Para quem sabe olhar uma cidade ou um prédio, é como um psicanalista escutar uma brincadeira ou um sonho. Revela tudo, e sobretudo revela coisas que a pessoa não pretende revelar. E como eu venho muito ao Brasil, há muitos anos, fiquei fascinado pelo que o país, nos seus prédios, fala e não fala. São extremamente eloquentes, como em todos os países.
Em sua opinião, quais as razões para a paixão brasileira pelo progresso desenvolvimentista, algo ainda presente em projetos como a transposição do Rio São Francisco ou as obras da Copa?
Colocaria a palavra “progresso” entre grandes aspas. Mas responderia em uma palavra: vergonha. Vergonha do país. Se você ler as justificativas históricas das remodelações das cidades brasileiras, começando pelo Rio de Janeiro de Pereira Passos e a criação da Avenida Central no início do século 20, você nota um desejo de recomeçar, de fazer com que o país seja diferente, e de desprezar o nacional, o local, o que já existe. Ontem o modelo foi Paris, hoje é Miami, amanhã seria, quem sabe, Dubai. E o que acontece, como se vê hoje, é que há um vínculo direto entre os gastos megalomaníacos em projetos “pra inglês ver” e o declínio econômico. Acho que os protestos dos últimos anos em torno da Copa, por exemplo, mostram que o cidadão entende isso muito bem.
Tirando exemplos pontuais, muito pouco da arquitetura brasileira da época da fundação de Brasília ainda está disponível. Em que essa recorrência da substituição do velho pelo novo é algo diferente, no Brasil, de outros países como os próprios Estados Unidos, por exemplo, também uma nação cativada pela ideia de inovação?A ideia de inovação é diferente. Diria que no Brasil é muito mais ideológico. No campo de urbanismo e arquitetura, há mais de um século, vemos uma ideologia extensamente articulada: mudaremos o país com a destruição de nossas cidades. Por isso começo com a remodelação do Rio de Janeiro nos primeiros anos do século 20. Era um movimento extremamente violento, e embora pareça brincadeira, não é: o “Morro da Favela” foi colonizado por pessoas pobres expulsas para criar o Theatro Municipal, uma coisa pretensiosa, tudo em ouro, no melhor estilo parisiense. Isso não é inovação, é perversão.

Você comenta, em Cemitério da Esperança, que Brasília é o ápice de um pensamento nacional de construir um futuro escondendo ou apagando os problemas do passado. É um de pensamento que ainda persiste na sociedade contemporânea que discute, com dificuldade, o período da ditadura militar, por exemplo?
Eu passei muitíssimo tempo no Brasil e creio que conheço o país bem. E como estrangeiro sinto-me obrigado a falar coisas que a maioria dos brasileiros não pode. Não porque não saibam ou não queiram. Mas entrei na briga com Caetano Veloso e cia. contra o projeto de censura às biografias (em 2013) justamente porque sei como é difícil para os jornalistas brasileiros, os escritores brasileiros. Como estrangeiro, posso falar, porque não dependo do Brasil, não vivo aqui. Mas quando fiz a biografia de Clarice Lispector, fiquei atônito pela quantidade de coisas que botei no meu livro que as pessoas acharam “corajosas.” Não eram. Como dizer que Mario de Andrade era homossexual. Mas tantas vezes me disseram: “Aqui não se pode falar isso. Se eu falasse isso ou aquilo perderia meu emprego no jornal, na faculdade.” Isso impera em muitas áreas. E o ruim do projeto de censura às biografias é que, como tantas coisas no Brasil, não é uma ameaça direta. Esse não é o estilo brasileiro. Mas é um aviso. Porque quem vai comprar briga com gente poderosa? Então há grandes, imperdoáveis silêncios no Brasil. A ditadura militar é um dos maiores.
Ainda a respeito disso: seu ensaio equipara a própria cidade de Brasília a um tipo de arquitetura monumental própria de regimes ditatoriais. É significativo disso que, logo após sua construção, Brasília foi apropriada pelo governo instalado depois do golpe de 1964?
Claro! Brasília quase não deu certo. Era enorme e caríssima. E há quem tenha dito – e é um assunto que nunca estudei profundamente – mas há quem tenha dito que o próprio golpe militar foi resultado de Brasília. Não foi o único motivo da crise econômica, mas era uma coisa que endividava o país bastante. E a crise econômica era uma grande justificativa para o golpe. Depois, naquele sonho de Ordem e Progresso, os militares sentiam-se perfeitamente à vontade.
A arquitetura brasileira, bem como muitos outros setores da sociedade nacional, sempre parece pensada para dar ou mostras de status ou para edificar uma ideia ideal de nação que dispensa o público, o povo, a escala humana. Que tipo de mudança deveria ocorrer para que o desenvolvimento voltasse a pensar nas pessoas mais do que em números?Escrevi em apoio ao Ocupe Estelita justamente porque não é um movimento revolucionário. É um movimento que diz, simplesmente, que as cidades devem pertencer ao cidadão e não a algum prefeito corrupto amigo de uma construtora que usa trabalho escravo. (Parece exagero: não é.) As pessoas no Brasil inteiro estão muito desmotivadas com o que vem acontecendo em todas as cidades do país, sem nenhuma exceção que conheça, nos últimos vinte anos. O país está cada dia mais feio e todo mundo o sabe. Mas não é verdade que nada se pode fazer. Como não é verdade que não há, no Brasil ou no mundo, pensadores e arquitetos que falam destes problemas, e oferecem soluções maravilhosas, há quase 50 anos. O povo precisa exigir governos que começam pelo que já temos, pelo que já aprendemos. E os intelectuais precisam educar as pessoas para que entendam que um shopping monstruoso não é uma inevitabilidade do destino. É uma escolha política que precisamos rejeitar.
A renda obtida com a venda do ensaio será destinada ao movimento Ocupe Estelita, que luta contra a construção de torres de edifícios  no cais de Recife. Você vê seu texto sobre Brasília como um alerta para que não se repita o sistemático apagamento do passado em benefício de um futuro de progresso?
De novo, “um futuro de progresso” não é o que vejo num projeto tão monstruoso como o do Recife. Vejo uma coisa muito antiga, um desejo de apagar o país, de transformar o cidadão num humilde consumidor, de impor uma visão do futuro que não tem nada a ver com as coisas boas do Brasil. Não posso entender que uma pessoa que queira destruir o Recife, que é uma das pérolas do país, esteja agindo com amor ao Brasil. Pelo contrário.
Você também não poupa críticas a Oscar Niemeyer, a quem define no livro como um homem que “nunca conseguiu dizer não a um tirano”. Brasília é, para você, resultado dessa admiração de Niemeyer pela autoridade totalitária?
Claro. Eu falo isso, mas quem fala da admiração dele pelos tiranos é o próprio Niemeyer. No Brasil, ele passou a ser visto como uma espécie de vovó louco e racista mas querido, excêntrico. Mas só podemos achar fofo se não o levamos a sério. Mas o que o Niemeyer fala de Stálin, de Castro, e de tudo mais, é sério. E não podemos passar por alto do que ele diz, porque era uma pessoa extremamente poderosa e respeitada. É preciso dizer que esse respeito não era merecido de jeito nenhum.
O senhor é um visitante frequente do Brasil, e já esteve aqui em Porto Alegre. Além de Brasília, que está à parte do país, como o senhor menciona no ensaio, qual é o traço distintivo que o senhor enxerga nas capitais do Brasil?Enxergo um país enorme e diverso e belo, mas que está se canibalizando. Pelo trânsito monstruoso, pelos prédios horríveis: bom, isso aqui se chama Manaus, e isso é Recife, e isso é Curitiba, mas está cada vez mais parecido, cada vez mais sem caráter. Logo o Brasil ficar sem caráter é difícil. Mas está conseguindo.
Em muitas cidades brasileiras, há um movimento ainda tímido de tentar apropriar-se das cidades e propor alternativas ao automóvel como meio de transporte. A própria São Paulo, maior cidade do Brasil, tem ensaiado algo do gênero, mesmo com muitas críticas. É possível casar a necessidade de crescimento de um país tão desigual como o Brasil a modelos urbanos adotados por nações em diferentes etapas de desenvolvimento, como França, Holanda ou mesmo os Estados Unidos?
Claro. O importante é entender que na Europa e também nos Estados Unidos, essas cidades bonitas que temos são resultado de uma luta enorme como a do Ocupe Estelita. Aqui na Holanda (onde o autor reside), nos anos 1950, havia um movimento para esvaziar os canais de Amsterdã, cobri-los com cimento e transformá-los em autoestradas. Parece mentira, mas não é. Porque as autoridades queriam ser “modernas”. Graças a Deus não conseguiram, mas em muitos lugares conseguiram destruir cidades históricas. E agora temos modelos maravilhosos, como em Nova York, onde transformaram um lugar fedorento, de indústria, de matadouros, num dos bairros mais bonitos da cidade. É preciso ver como as cidades podem ser revitalizadas, e felizmente para o Brasil há muitos modelos no mundo inteiro que mostram que a feiura não é inevitável.

Fonte da Matéria acima: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/proa/noticia/2014/11/benjamin-moser-o-brasil-esta-se-canibalizando-4653001.html


Na edição de hoje - 28/12/2014 do Jornal Zero Hora, no Caderno PrOA, o professor e arquiteto da UFRGS, Edson Mahfuz, faz uma análise da obra em questão. O professor de projetos da UFRGS destaca a importância do livro para uma análise crítica da obra dos dois grandes mestres da arquitetura brasileira: Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, autores do projeto de Brasília. Foi preciso que surgisse um olhar estrangeiro para criticar o país e sua capital, pois aqui, falar mal de Brasília e de seus dois criadores é um tabu.
Benjamin Moser parece crer que a monumentalidade é sempre negativa em arquitetura e urbanismo, principalmente porque associa à grande escala e as obras construídas por regimes totalitários. Mas essa mesma monumentalidade pode ser vista como algo diferente; a cidade tradicional, já há bastante tempo é constituída por dois elementos essenciais: o tecido urbano composto pelos edifícios dedicados à moradia, ao trabalho, aos serviços, e seus monumentos, aqueles edifícios que possuem importância coletiva por representarem instituições humanas, como escolas, igrejas, prédios administrativos, etc. Esse é um ponto de vista do monumental que não o associa com a opressão e sim com a identidade visual da cidade.
Segundo Mahfuz, o autor parece se incomodar com cidades organizadas de acordo com sistemas formais regulares. A regularidade e unidade do esquema geral é algo comum nos poucos casos em que se criou cidades do zero, porque, é preciso criar uma ordem clara e inteligível sobre a qual a cidade possa ir se desenvolvendo. A dinâmica urbana se encarrega de suavizar a rigidez inicial, coisa que não ocorreu em Brasília, pois sempre foi considerada uma obra-prima intocável, sendo considerada patrimônio cultural da humanidade.
Na análise do professor Mahfuz, o desenho de Brasília é um híbrido de um esquema geométrico de origem clássica com uma disposição de atividades influenciada pelo pior pensamento urbanístico do modernismo, que pregava a separação física de atividades componentes de uma cidade. O pensamento urbanístico atual coincide sobre um certo número de valores que caracterizam os melhores lugares do mundo, muitos deles com séculos de existência: alta densidade, concentração, mistura de atividades, possibilidade de alcançar a pé as necessidades básicas do ser humano e transporte coletivo de qualidade.
Brasília é o oposto de tudo isso. É uma cidade espalhada, onde as principais atividades estão separadas: vive-se aqui, trabalha-se lá, compra-se acolá. Caminhar em Brasília não faz sentido, a não ser para fazer exercício, mas mesmo assim não se tira prazer disso porque o cenário muda pouco e não há quase nada para ver. No texto, Mahfuz nos diz que o problema de Brasília não é o seu tamanho em si, mas sua escala em relação ao ser humano. A escala do pedestre foi ignorada, pois as distâncias entre edifícios são enormes e nada de interessante acontece no nível térreo.
O conjunto das superquadras não constitui um tecido, pela distância entre os edifícios e o fato de que não se comunicam entre si. Para o arquiteto, o autor do livro está correto ao afirmar que a chance de Brasília se tornar uma cidade real estaria na sua densificação, na ocupação dos espaços vazios, mas isso não acontecerá pois a cidade foi congelada como monumento cultural.
No texto do livro, Moser comete um erro muito comum, pois parece acreditar que Oscar Niemeyer é o autor do plano urbanístico de Brasília, sem nunca mencionar seu verdadeiro autor, Lúcio Costa. Niemeyer é autor dos principais edifícios da cidade, mas não se sabe que tenha tido qualquer influência sobre o projeto de Costa.

Para encerrar, o texto acima é um resumo do artigo de Edson Mahfuz na referida edição do Jornal Zero Hora, usando muitas vezes os escritos do arquiteto professor da UFRGS. Na parte final do artigo, ele diz que Moser nos presta um serviço ao atacar Brasília. Se Brasília não pode mais ser salva, que pelo menos sirva de exemplo negativo, impedindo-nos de continuar cometendo os mesmos erros.











Para autor norte-americano, Brasília é símbolo de um país que tenta avançar apagando o passado Foto: Julio Cavalheiro / Agencia RBS












O escritor Benjamin Moser Foto: Jan Boeve, Divulgação

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