segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Memorial Jesuíta da Unisinos - São Leopoldo - RS

É uma operação delicada. Depois de cumprimentar repórter e fotógrafo, nossa guia veste luvas cirúrgicas e nos conduz por um salão trancado a chave. Um termo-higrômetro monitora a temperatura do ambiente, que deve estar entre 18°C e 22°C, e a umidade do ar, o mais próximo possível de 55%. Isabel Cristina Arendt é historiadora e assistente de pesquisa do Memorial Jesuíta da Unisinos, em São Leopoldo, cujo acervo está no terceiro e no sexto andares do prédio da biblioteca da universidade. Estamos no terceiro, onde são guardados os livros. No sexto, ficam periódicos e documentos.

– “Arendt” como Hannah Arendt – observa com um sorriso, referindo-se à celebre cientista política e filósofa alemã (1906 – 1975). – Mas não sei se há relação de parentesco.

Isabel, 42 anos, lê em alemão, inglês, latim e grego antigo e lamenta ainda não saber francês. Embora não haja mais ninguém no local, por vezes fala quase sussurrando enquanto folheia os volumes, como se guardasse um respeito sagrado. É que, entre os títulos do acervo de 200 mil a 300 mil itens (o número é impreciso porque nem tudo está catalogado), estão raridades de áreas como teologia, filosofia, literatura e ciências naturais. As luvas servem para evitar que os resíduos naturalmente depositados nos dedos danifiquem as páginas, já agredidas pelo tempo. Cerca de 2,3 mil volumes publicados entre os séculos 15 e 18 compõem a coleção mais rara.

O Memorial Jesuíta recebe pesquisadores desde 2001, quando o acervo foi constituído, mas será aberto oficialmente para consulta em cerimônia no dia 29 de março. Como ocorre em qualquer biblioteca de livros raros e especiais, os estudantes deverão comprovar interesse acadêmico para ter acesso, e nenhum livro poderá ser retirado do local. Uma armário com fichas de papel que abrangem parte do acervo confere certo charme à sala de leitura, mas o catálogo também pode ser consultado em formato digital.

Os livros mais antigos ficam em uma sala separada a que os funcionários se referem como “cofre”. Isabel prefere não divulgar os detalhes de segurança. Não é sem motivo: ela está escaldada pela notícia de que, na quinta-feira, dia 2, três homens armados invadiram o Instituto de Botânica do Estado de São Paulo e roubaram 15 volumes de três obras raras publicadas entre 1827 e 1913. Embora sem valor de mercado, os títulos – sobre palmeiras, bambus e a flora fluminense – são valiosos para pesquisadores da área.

Está no cofre o livro mais antigo do Memorial Jesuíta: Repertorii Totius Summe Domini Antonini Archiepiscopi Florentini Ordinis Predi, de Santo Antonino de Florença (1389 – 1459), publicado em latim em 1496. Trata-se de um incunábulo, como são chamadas as primeiras obras impressas com tipos móveis, não manuscritas. São quatro volumes com capa de madeira, dos quais a biblioteca não tem o terceiro. Há pouquíssimos exemplares no mundo: sabe-se que está no catálogo de sete instituições americanas. Curador adjunto do memorial e professor do Programa de Pós-Graduação de História da Unisinos, Luiz Fernando Medeiros Rodrigues explica:

– É basicamente uma obra de direito canônico, mas naquela época o direito civil e o canônico se confundiam um pouco. O livro é importante porque tem os princípios que vão fundar o direito moderno. Aí se pode fazer uma história jurídica, cultural.

O acervo foi reunido de bibliotecas de escolas e seminários do Rio Grande do Sul como o Colégio Máximo Cristo Redentor, em São Leopoldo (que dá nome a uma das coleções), que começaram a ser desativados na década de 1950 e onde também se formou o clero de Santa Catarina e Paraná. As obras vinham da Europa, doadas por instituições de lá, enviadas pelas famílias dos estudantes ou adquiridas pelos próprios em viagens. Assim, os títulos remontam aos diferentes interesses dos jesuítas, cujos primeiros representantes chegaram ao sul do país no século 19, vindos principalmente de países falantes de alemão e italiano – dois dos povos que formavam a base da colonização europeia no Estado.

– O foco dos livros que vieram da biblioteca do Cristo Rei é filosofia e teologia, mas se encontra ali toda a cultura necessária para fazer um trabalho pastoral nas colônias das comunidades do Interior. Há livros que ajudam a realizar partos, a construir pontes, a fazer contabilidade. São 360 graus em termos de cultura: passa por geografia, história, economia, política, direito e sociologia, entre outras áreas – afirma o professor Rodrigues.

Nem todos os títulos estão em condições de serem lidos. Muitos estão deteriorados; alguns praticamente não podem ser folheados sob pena de se desmancharem. É o caso de um livro de sermões de autoria de Mathias Faber (1587 – 1653) publicado em 1653. Devido à contínua ação dos insetos, lembra mais um queijo suíço. As páginas se desprenderam da encadernação do livro, o que torna impossível fechá-lo com a capa de madeira. Fica sempre semiaberto.

Depois da catalogação, que ainda não está concluída, a fase seguinte será a restauração, um trabalho altamente especializado e caro. A recuperação de apenas um livro pode custar entre R$ 10 mil e R$ 30 mil, segundo o professor Luiz Fernando Medeiros Rodrigues. Para esta etapa, a equipe da biblioteca vai estabelecer um critério de prioridade baseado na relevância da obra e na procura de pesquisadores.

No momento em que as bases de dados migram em velocidade espantosa para o formato digital, nunca foi tão importante recuperar o conhecimento em papel, inclusive para que possa ser posteriormente convertido em bytes, como diz Arthur Blásio Rambo, professor de antropologia aposentado da UFRGS e da Unisinos e pesquisador do Memorial Jesuíta, tendo participado de sua fundação:

– As duas formas (papel e digital) terão que coexistir. Algumas destas obras já estão disponíveis na internet. O acesso não é uma questão de suporte, mas de compreensão da língua. Cerca de 80% das nossas obras são em latim, francês, alemão e grego. O 2º grau (atual Ensino Médio) das escolas não oferece mais aos alunos os instrumentos necessários para acessar o conteúdo destes livros como fazia antigamente.

Nas palavras do professor Rambo, o Memorial Jesuíta reúne obras fundamentais para se entender a “modernidade ocidental ou o chamado grande século 19”. Exemplo disso é a histórica primeira edição da Enciclopédia organizada pelos filósofos franceses Denis Diderot (1713 – 1784) e Jean Le Rond d’Alembert (1717 – 1783), publicada entre 1751 e 1772. São 17 volumes de textos e 11 de imagens que representam o espírito progressista do Iluminismo no prelúdio da Revolução Francesa. Na expectativa da abertura oficial do acervo a pesquisadores, Rambo adianta que há mais a ser explorado:

– Pouco tem se falado da grande coleção de 1,2 mil periódicos. Acredito que está lá a maior mina de informação. As revistas normalmente contêm as grandes discussões, em forma de artigo, antes de surgirem consolidadas na forma de livros.

Como ainda não há previsão de catalogação dos periódicos, os pesquisadores que subirem ao sexto andar da biblioteca deverão levar em suas pastas uma dose extra de paciência e perseverança para se localizar em meio ao material.

Outras informações sobre o Memorial Jesuíta podem ser obtidas no site www.unisinos.br/memorialjesuita, pelo e-mail memorialsj@unisinos.br ou pelos telefones (51) 3590-8802 e (51) 3590-8821.

Fonte Original da Notícia: http://www.defender.org.br/sao-leopoldors-a-grande-biblioteca-da-modernidade/

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